21.05.15 Mushi-san - Fechando

– Eueueu eueu eu eueueu! – dizia com ira o homem franzino e quase careca com seus parcos tufos de cabelo coroando a calvície em expansão como se fosse uma auréola preto-tinta. Usava óculos grandes de aros grossos que enfatizavam o ódio em seus olhos, que estavam acordo com sua boca, quadrada de tão escancarada de raiva.

– Eu! Eu eu eueu!

Atashi deu de ombros, o pegou pelo colarinho e jogou pela janela, onde Ore o aguardava para leva-lo. A colheita estava quase no fim.

– Eles fizeram todo o serviço para nós, né? – dizia Ore enquanto colocava o homem com dezenas de outros iguais, esquálidos, resmungões e sem cor dentro das celas do transporte.

– Como assim?

– Não é óbvio, Atashi? Os humanos precisaram de nós pra destruir todos os recursos naturais e todas as formas de vida que não fossem eles próprios? Claro que não, foi só seguir a vontade de tirar da frente o que o atrapalhava o progresso de suas vontades.

– Claro isso traria problemas… Mas estes macacos sem rabo sempre foram os mais inteligentes da turma, não é? Certamente resolveriam isso depois – Atashi se lança para outro edifício, deixando seu companheiro com a ironia.

– Sim, certamente. Depois alguém resolve, ou ao menos paga as contas. Pra que fazer isso agora?

Não encontram mais ninguém e voam em silêncio por alguns quarteirões, para longe de onde estavam, sob as pesadas nuvens de enxofre. Logo estão em outro bairro da megalópole e os olhos de Atashi brilhavam de alegria com a visão do local, por seu presente e por seu passado.

– Você acredita que toda a cidade foi construída sobre valas comuns? Quinhentos milhões vítimas de fome e doença, túmulos sem nome. Duas gerações depois, imponentes edifícios eram semeados aqui.

– E quem se importava com eles? Eram os fracos, os fora do padrão. Que só serviam para sugar o sucesso dos melhores entre os humanos, dos que mereciam a Terra.

– Nem eles mesmos se importavam entre si, não é? Os fracos e os fora do padrão se mataram mais do que morreram, deixando a casta superior praticamente em paz.

– E os mais fortes entre os fracos mantinham seus iguais na linha para os seus superiores, não?

– Sim. E quando estes mais fortes ameaçaram seus mestres, chegaram as máquinas.

– … precisas, rápidas, fortes, obedientes – Ore relembra a lição passada contando nos dedos.

– E com elas, eles se livraram definitivamente dos seus problemas. Sem eufemismos, sem a nossa ajuda.

As ruas estavam vazias.

Sem dificuldades encontraram um templo, encrustado de ouro e de cruzes.

– Você acha que os mortos vão se levantar para serem julgados?

– Quem liga para a carne dos mortos? Os bons já estão longe daqui, sem esse peso. Os que sobraram são os que já foram condenados, por antecipação.

Lá dentro, os dois se veem cercados dezenas de ilustrações: santos curando, santos matando demônios, demônios causando doenças e morte. Junto às paredes, montanhas de ouro e outras preciosidades.

– Sério que eles nos culpavam pelo que eles mesmos faziam?

– Não é lisonjeiro?

– Sim! Me sinto uma divindade!

– Eles diziam adorar um-que-era-três, mas na verdade adoravam a gent… ah, achei!

Eufóricos, os dois voam ligeiros e capturam o que se escondia sob os bancos de madeira. Primeiro, guinchou de medo, depois começou a bater em ambos com o grosso livro de capa preta, berrando pateticamente “Eeeeeeeeu eueu! Eueu, eueu Eueueu!!!”

– E essa língua do “eu”? Isso cansa meus ouvidos, Atashi?

– Só falam deles mesmos, Ore. Podem até enfeitar com outras palavras, mas como só ouvimos o que está no cerne do que eles querem dizer… fica monótono para nós.

– Que inferno.

– Já estamos indo para lá, o mundo acabou de vez: esse aqui era o último.

– Mataram-se uns aos outros, mentiram, abusaram, destruíram tudo. Agora, acabou a diversão. Passaremos a eternidade com nossos irmãos, nos apertos das terras abissais e nesse mundo em ruínas.

– Foi para isso que lutamos contra o Paraíso, Ore? Para existirmos cercados de trilhões de seres que nem esse aqui, só falando “eueueueu” até que a última estrela se apague?

– Achávamos que trazendo-os para nosso lado, seriam excelente infantaria contra as tropas divinas.

Ore e Atashi e seguem voando, em direção ao vermelho do sol poente por detrás da grossa camada de nuvens. E a cada bater de suas grossas asas de couro, ambos têm mais e mais certeza de que o Céu ganhara a guerra contra o Inferno, sem precisar mover sequer uma única legião de anjos.

Texto & Arte: Mushi-san